sábado, 16 de outubro de 2010

Os dois olhos - Rubem Alves

           "Temos dois olhos. Com um nós vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro nós vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem." Assim escreveu o místico Ângelus Silésius.
No consultório do oftalmologista estava uma gravura com o corte anatômico do olho. Científica. Verdadeira. Naquela noite o mesmo oftalmologista foi se encontrar com sua bem-amada. Olhando apaixonado os seus olhos e esquecido da gravura pendurada na parede do seu consultório, ele falou: "Teus olhos, mar profundo...". No consultório ele jamais falaria assim. Falaria como cientista. Mas os olhos da sua amada o transformaram em poeta. Cientista, ele fala o que vê com o primeiro olho. Apaixonado, ele fala o que vê com o segundo olho. Cada olho vê certo no mundo a que pertence.
O filósofo Ludwig Wittgenstein criou a expressão "jogos de linguagem" para descrever o que fazemos ao falar. Jogamos com palavras... Veja esse jogo de palavras chamado "piada". O que se espera de uma piada é que ela provoque o riso. Imagine, entretanto, que um homem, em meio aos risos dos outros, lhe pergunte: "Mas isso que você contou aconteceu mesmo?". Aí você o olha perplexo e pensa: "Coitado! Ele não sabe que nesse jogo não há verdades. Só há coisas engraçadas".
Vamos agora para um outro jogo de palavras, a poesia: "e, no fundo dessa fria luz marinha, nadam meus olhos, dois baços peixes, à procura de mim mesma". Aí o mesmo homem contesta o que o poema diz: "Mas isso não pode ser verdade. Se a Cecília Meireles estivesse no fundo do mar, ela teria se afogado. E olhos não são peixes...".
Pobre homem. Não sabe que a poesia não é a linguagem para dizer as coisas que existem. É jogo para fazer beleza. A ciência também é um jogo de palavras. É o jogo da verdade, falar o mundo como ele é.
Acontece que nós, seres humanos, sofremos de uma "anomalia": não conseguimos viver no mundo da verdade, no mundo como ele é. O mundo como ele é é muito pequeno para o nosso amor. Temos nostalgia de beleza, de alegria e, quem sabe? de eternidade. Desejamos que as alegrias não tenham fim! Mas beleza e alegria, onde se encontram essas "coisas"? Elas não estão soltas no mundo, ao lado das coisas do mundo tal como ele é. Elas não são, existem não existindo, como sonhos, e só podem ser vistas com o "segundo olho". Quem as vê são os artistas. E se alguém, no uso do primeiro olho, objeta que elas não existem, os artistas retrucam: "Não importa. As coisas que não existem são mais bonitas" (Manoel de Barros). Pois os sonhos, no final das contas, são a substância de que somos feitos.
Como disse Miguel de Unamuno: "Recuerda, pues, o sueña tu, alma mia lá fantasia es tu sustância eterna lo que no fue; com tus fuguraciones hazte fuerte, que eso es vivir, y lo demás es muerte".
É no mundo encantado de sonhos que nascem as fantasias religiosas. As religiões são sonhos da alma humana que só podem ser vistos com o segundo olho. São poemas. E não se pode perguntar a um poema se ele aconteceu mesmo.
Jesus se movia em meio às coisas que não existiam e as transformava em parábolas, que são histórias que nunca aconteceram. E, não obstante a sua não-existência, as parábolas têm o poder de nos fazer ver o que nunca havíamos visto antes. O que não é o que nunca existiu, o que é sonho e poesia tem poder para mudar o mundo. "O que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?", perguntava Paul Valèry.

Leio os poemas da criação. Nada me ensinam sobre o início do universo e o nascimento do homem. Sobre isso falam os cientistas. Mas eles me fazem sentir amoravelmente ligado a esse mundo maravilhoso em que vivo, do qual minha vocação é ser jardineiro... Leio a parábola do Filho Pródigo, uma história que nunca aconteceu. Mas, ao lê-la, minhas culpas se esfumaçam e compreendo que Deus não soma débitos nem soma créditos...Dois olhos, dois mundos, cada um vendo bem no seu próprio mundo...
Aí vieram os burocratas da religião e expulsaram os poetas como hereges. Sendo cegos do segundo olho, os burocratas não conseguem ver o que os poetas vêem. E os poemas passaram a ser interpretados literalmente. E, com isso, o que era belo ficou ridículo. Todo poema interpretado literalmente é ridículo. Toda religião que pretenda ter conhecimento científico do mundo é ridícula.
Não haveria conflitos se o primeiro olho visse bem as coisas do seu lugar e o segundo olho visse bem as coisas do seu lugar. Conhecimento e poesia, assim, de mãos dadas, poderiam ajudar a transformar o mundo.
Rubem Alves, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp e colunista do caderno Sinapse. Autor de "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papius), entre outras obras.