sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Mal secreto
Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!
Raimundo Correia

Instrumento
A cana agreste ou a harpa de ouro
permitem que alguém acorde
com brando pulso ou leve sopro.
Têm memória de água e vento
e – além dos mundos desvairados –
do silêncio, o etéreo silêncio!
Seus poderes de eternidade
tornam imenso e inesquecível
o som mais transitório e suave.
Chega-te concentrado e cauto,
que o universo inteiro te escuta!
Frase inútil, suspiro falso
vibram tão poderosamente
que a mão pára, o lábio emudece,
com medo do seu próprio engano.
E o eco sem perdões o repete
para um ouvinte sobre humano.



quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Soneto XXIII
William Shakespeare
Como no palco o ator que é imperfeito
Faz mal o seu papel só por temor,
Ou quem, por ter repleto de ódio o peito
Vê o coração quebrar-se num tremor,
Em mim, por timidez, fica omitido
O rito mais solene da paixão;
E o meu amor eu vejo enfraquecido,
Vergado pela própria dimensão.
Seja meu livro então minha eloqüência,
Arauto mudo do que diz meu peito,
Que implora amor e busca recompensa
Mais que a língua que mais o tenha feito.
Saiba ler o que escreve o amor calado:
Ouvir com os olhos é do amor o fado.


Traduzir-se
de Ferreira Gullar
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
-que é uma questão
de vida ou morte-
será arte?

O Ninho
O musgo mais sedoso, a úsnea mais leve
Trouxe de longe o alegre passarinho,
E um dia inteiro ao sol paciente esteve
Com o destro bico a arquitetar o ninho.
Da paina os vagos flocos cor de neve
Colhe, e por dentro o alfombra com carinho;
E armado, pronto enfim, suspenso, em breve,
Ei-lo, balouça à beira do caminho.
E a ave sobre ele as asas multicores
Estende e sonha. Sonha que o áureo pólen
E o néctar suga às mais brilhantes flores;
Sonha… Porém, de súbito, a violento
Abalo acorda. Em torno as folhas bolem…
É o vento! E o ninho lhe arrebata o vento
Alberto de Oliveira

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Lutar com Palavras é a Luta Mais Vã
Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. Mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida. Deixam-se enlaçar, tontas à carícia e súbito fogem e não há ameaça e nem há sevícia que as traga de novo ao centro da praça.
Carlos Drummond de Andrade